O sexo dos anjos, ou como a complexidade das pandemias exige pensamento sistémico

Luis Rocha
6 min readFeb 18, 2021

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versão longa de artigo no Público.

Desde novembro de 2020 já morreram por Covid-19 quase 13000 pessoas em Portugal, sem contar com mortes indiretas devido à falta de atenção médica a outras doenças. É como se mais de 31 aviões Jumbo tivessem caído no nosso país. No meio da morte e devastação económica, é fácil esquecer que tudo isto se deve a um vírus 1000 vezes mais pequeno do que um cabelo humano que transitou de algum organismo para as nossas redes de alimentação, transporte, saúde, educação, economia, comunicação e governação. Já aqui escrevi que o estudo das redes que ligam rapidamente o mais ínfimo vírus à mais potente economia não tem recebido a atenção necessária no Mundo ocidental. Mas é importante perceber porque a resiliência e até a sobrevivência da nossa sociedade face a pandemias necessita de uma abordagem verdadeiramente interdisciplinar e sistémica.

A ciência estuda a natureza e sociedade delimitando-as de acordo com os níveis em que as experienciamos. Disciplinas e departamentos universitários são assim organizados desde o estudo do mais pequeno, como a física de partículas e a biologia molecular, até ao estudo da biosfera e astrofísica, passando pelo estudo de sociedades inteiras, como na economia e sociologia. O problema é que os fenómenos verdadeiramente complexos escapam a essa assunção de organização hierárquica¹ , como demonstra esta pandemia ao emaranhar tantos níveis: desde as interações moleculares que permitiram ao SARS-Cov-2 passar para humanos, até às redes de transporte, economia e saúde publica que foram alteradas por essa transmissão molecular. Pior ainda, o vírus continua a sua evolução por seleção natural, e quanto mais se propaga, mais evolui, o que quer dizer que o seu impacto não é constante.

Como cada cientista é tipicamente treinado a lidar apenas com um nível, ignorando ou assumindo a estabilidade dos outros, nenhum é um “especialista” na pandemia que mistura todos os níveis dinamicamente. Esta complexidade está por trás de imensos problemas revelados neste contexto. Como disse Theodosius Dobzhansky, “nada faz sentido em Biologia sem ser à luz da evolução”. Mas até o epidemiologista chefe da Suécia e proponentes da declaração de Great Barrington aparentemente a esqueceram. Ao proporem não controlar a propagação, implicitamente assumiram que a transmissibilidade e letalidade do vírus se manteria constante, esquecendo que este evolui tanto mais quanto maior for a população de pessoas por infetar. Infelizmente as novas variantes demonstram o perigo dessa evolução, tornando medidas anteriormente eficazes (como confinamentos mais leves ou máscaras sociais) insuficientes para não ultrapassar a capacidade dos sistemas de saúde antes das vacinas começarem a fazer efeito (Figura 1 ).

Figura 1: Esquema conceptual da corrida entre vacinas e variantes mais infeciosas. Já não se trata de achatar a curva mas de ganhar tempo. Com as novas variantes, medidas de contenção anteriormente eficazes não chegam. Imagem retirada com permissão de: Petersen, M.B., et al. 2021. “Communicate Hope to Motivate Action Against Highly Infectious Sars-cov-2 Variants.” PsyArXiv. February 9. doi:10.31234/osf.io/gxcyn.

Também muitos economistas tentam separar o fenómeno epidemiológico do impacto económico e social que medidas de saúde publica têm na população. Tratando em separado estes problemas, parece-lhes óbvio que minimizar as mortes por via de confinamento poderá sair caro demais para os mais pobres. O problema é que quando a propagação fica descontrolada, a mortalidade e desolação são tais que o impacto na economia é ainda maior, especialmente nos mais pobres. Veja-se a teimosia de não fechar as escolas após relaxamento no Natal, quando tantos países europeus fizeram o contrário. Só tornou muito pior tanto o número de mortos como a economia (e daí pior impacto nos mais pobres) porque agora temos de confinar agressivamente por mais tempo−já para não falar da reputação de Portugal que está agora no Top 5 de mortes per capita por covid (países com mais de 3 milhões de habitantes) .

A existência destes feedbacks entre níveis que não são separáveis é precisamente o que define um sistema complexo como a pandemia. Para a resolver é necessário sair de caixas disciplinares e adotar pensamento sistémico². Mais do que “especialistas” ouvidos individualmente em cacofonia, precisamos de equipas verdadeiramente interdisciplinares que consigam atacar a pandemia em todo o seu complexo de níveis interligados. Não é difícil identificar quando um problema trespassa níveis e não pode ser resolvido apenas com conceitos usados nesse nível. Por exemplo, os problemas causados pelo fecho das escolas ou dos restaurantes no confinamento podem ser quase totalmente resolvidos com mais dinheiro, mas a propagação da pandemia não. Também não pode ser resolvida só pela virologia, mesmo com as vacinas. Necessita, entre outras coisas, de alteração e regulação de comportamentos, incluindo restrições temporárias de direitos civis.

Ficou recentemente em voga defender que não se pode deixar a ciência “colonizar” a política na resposta à pandemia. No Twitter, Susana Peralta disse-me “O confinamento não é ‘necessário’. É uma escolha política. Tem vantagens e desvantagens. Pesá-los é do domínio da política. Nós, os técnicos/académicos, devemos alertar para as consequências de cada opção política nas nossas áreas. Ao governo e só ao governo compete decidir”. Isto é, a Ciência é vista como separada da governação e as suas disciplinas consideradas como variáveis independentes. Mas os países que melhor protegeram os seus cidadãos e economia da pandemia não o fizeram a ler Max Weber, nem levantar bandeiras ideológicas leva o vírus a mudar de comportamento. Finalmente percebo aquela história dos cidadãos de Constantinopla a discutir o sexo dos anjos com o exército Otomano à porta. Tal como os romanos bizantinos, grande parte da opinião está em negação face à realidade complexa da pandemia. A nossa realidade não está em curso estável para que possamos considerar cada um dos seus níveis separadamente; a pandemia é como uma singularidade que os mistura a todos.

Veja-se por exemplo como a comissão nacional de proteção de dados deu um golpe mortal na aplicação de rastreio Stay Away Covid, ao deificar a privacidade como um valor absoluto separado do seu impacto na saúde publica e economia. Especificamente, exigiu que apenas médicos possam entrar códigos de casos positivos na aplicação, o que tornou a aplicação inútil. Mas aplicações como esta são componentes essenciais da aproximação sistémica das democracias da Ásia-Pacifico que controlaram a pandemiaincluindo países tão pobres como o Butão. Seria bom quantificar quantas mortes e desolação económica essa decisão da CNPD causou ao considerar a privacidade separadamente do contexto da pandemia.

Não podemos continuar a tratar a pandemia com especialistas separados por disciplina, nem tampouco focar exclusivamente na elevação de ideais políticos como se eles pudessem sobreviver separadamente se a pandemia continuar a evoluir descontroladamente por anos. Não está de todo fora das possibilidades este vírus−ou outro num futuro próximo−evoluir para algo que pode aniquilar a civilização−altura em que a democracia será tão relevante quanto o sexo dos anjos.

¹ Um dos sucessos da ciência tem sido a sua capacidade de delimitar problemas a uma escala apropriada aos nossos limites cognitivos. Na prática isto é feito agregando os efeitos de níveis em que não estamos interessados, assumindo que são suficientemente constantes para ser ignorados−ou considerados como condições fronteira na linguagem da física. Por exemplo, um oncologista pode na prática ignorar efeitos quânticos quando estuda a transmissão de fatores genéticos ligados ao cancro entre gerações. Muitos problemas podem de facto ser estudados bem dessa maneira, algo que Herbert Simon atribuiu a hierarquias naturais de organização que permitem que muitos problemas sejam na prática “quase-decomponíveis.” Uma nota para lembrar que Simon foi um dos casos notáveis de interdisciplinaridade, tendo recebido tanto um Nobel em Economia como o premio Turing em computação.

² Mas como se pode integrar a perícia de especialistas, treinados em níveis individuais, para otimizar a resposta à pandemia e obter sociedades mais resilientes? A resposta passa certamente por incluir mais pensamento sistémico. Esta aproximação iniciada no Sec. XX por cientistas como Alan Turing, John Von Neumann, Herbert Simon, Margaret Mead e outros, baseia-se no estudo de sistemas complexos por equipas interdisciplinares capazes de integrar o conhecimento de cada nível necessário ao problema. A aproximação nasceu precisamente para resolver problemas existenciais que nenhum cientista poderia resolver sozinho, como o Manhattan Project e a decifração das máquinas Lorenz e Enigma da Alemanha Nazi pelas equipas interdisciplinares de Bletchley Park. A metodologia tem sido extremamente produtiva desde a sua aplicação na Economia (de Herbert Simon a Elinor Olstrom) até aos melhores modelos de previsão da pandemia de COVID19 da atualidade. Para formar estas equipas é essencial treinar cientistas que sejam 1) “bilingues” em modelos computacionais e noutra área científica especifica e 2) preparados a trabalhar em equipas interdisciplinares. Há mais de 15 anos que dirijo um programa doutoral nos EUA — patrocinado por um grande projeto da National Science Foundation — para treinar este tipo de especialista. Cada aluno sai com um duplo doutoramento em sistemas complexos e numa área de foco, desde a física e biologia, à economia, sociologia e até a história da arte. Vários programas semelhantes existem pelo Mundo fora, produzindo uma nova geração de cientista e académico capaz de atravessar os níveis naturais e sociais envolvidos em problemas complexos.

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Luis Rocha

Complex systems, networks, biomedicine, AI, evolution. Music, politics, post-national identity. DJ as E-Trash. “E se mais mundo houvera, lá chegara.”